Quando falamos em Torrontés, logo nos remete à Argentina.
De 12 a 19 de outubro se celebra em todo o país a Semana del Torrontés, variedade branca emblemática. Sua origem crioula é única e sua história mostra como evoluiu até se converter em uma casta capaz de oferecer vinhos elegantes, frescos e muito expressivos.
Até semana passada, desconhecia que existem três variedades de Torrontés: Torrontés Riojano, Torrontés Sanjuanino e Torrontés Mendocino. Sendo a melhor das três, e mais disseminada, a Torrontés Riojana, caracterizada pelas suas notas florais, fruto do cruzamento natural e nativo de Moscato de Alexandria e Criolla Chica que se acredita datar do século XVIII.
Mas engana-se quem pensa que tal qualidade se conquistou sem esforços, houve momentos chaves de um caminho que uniu a paixão pela investigação e a decisão de obter um vinho de maior qualidade, respeitando ao máximo o que o Torrontés Riojano tem em sua essência.
Até a década de 1980, a variedade Torrontés Riojano era considerada uma uva comum, sem destaque no país. Foi quando Dr. Rodolfo Griguol (chamado de “padre del Torrontés moderno”), atual Chefe de Enologia da Cooperativa La Riojana, se aprofundou na pesquisa e com isso permitiu que todos os Torrontés Riojanos expressassem todo o seu potencial em vinhos de maior qualidade. Naquela época o vinho dessa casta tinha notas herbáceas e selvagens que lhe conferiam uma certa rusticidade, mas ao provar as uvas nos vinhedos era evidente que tinham muito potencial em aroma e delicadeza, bastava experimentar transferir essas características para o vinho produzido.
Para isso, começaram por estudar separadamente os Torrontés das diferentes zonas, para saber se esta rusticidade dependia da uva, mas como resultado não foram encontradas diferenças significativas. Depois foram estudados os diferentes processos de produção, onde foram feitas diversas alterações, passando da produção tradicional à prensagem pneumática, clarificação dos mostos, correção de acidez, nutrição adequada, fermentação controlada a baixas temperaturas; trabalhando sempre com fermentações espontâneas (leveduras nativas). O resultado obtido com a mudança de tecnologia e melhor controle do processo foi importante porque foi possível diminuir as notas rústicas, mantendo o frutado e o frescor típico deste vinho, mas ainda manteve algumas notas herbáceas e seus toques amargos que o fizeram perder a delicadeza. Foi então iniciada a terceira etapa da pesquisa, voltada para a biotecnologia, na qual começaram a testar a fermentação do Torrontés Riojano com a inoculação de diferentes leveduras comerciais.
Os resultados alcançados foram muito interessantes: o vinho obtido com algumas leveduras comerciais revelou-se muito delicado, sem notas herbáceas, com perfil aromático cítrico e de frutas brancas, porém, sem as notas aromáticas florais típicas do Torrontés Riojano: flores de laranjeira, casca de laranja, salada de frutas, as características que se percebem na degustação da uva. Então surgiu a seguinte hipótese: se as leveduras nativas dão tipicidade aromática, mas com o defeito das “notas herbáceas”, e com as leveduras comerciais consegue-se a delicadeza, mas perde-se a tipicidade.
No entanto, por se tratar de uma casta de maturação precoce, o calor fez com que muitas vezes ficasse demasiado madura, resultando em vinhos excessivamente alcoólicos, sem acidez e com final amargo. Mais recentemente, o investimento e as melhorias tanto no cultivo da uva como na vinificação aumentaram seu perfil. Redução dos rendimentos, colheita mais precoce e controle cuidadoso da temperatura durante a fermentação produziram vinhos mais frutados (limão, toranja, pêssego) em vez do que abertamente floral e mais fresco com níveis mais baixos de álcool. Torrontés tem se mostrado particularmente bem-sucedido em Cafayate (Salta), mas cada vez mais os vinhos vêm de outros vinhedos mais frescos e mais altos, em particular do Vale do Uco.
A maioria dos Torrontés são elaborados para consumo imediato, mas alguns produtores fermentam pequenas quantidades em carvalho para combinar com o vinho não envelhecido para produzir vinhos mais dignos de envelhecimento. Embora geralmente feito em vinhos monovarietais, alguns produtores agora o misturam com outras variedades, em particular Sauvignon Blanc. Também são encontrados vinhos perfumados, doces e de colheita tardia. Após longas pesquisas, onde avaliaram 8.000 clones de leveduras que recolheram em vinhas e 15.000 clones de leveduras de adega, conseguiram isolar um que apresenta características de delicadeza, sem perder a tipicidade, a chamaram de LRV 945.
Em viagem à região, sugiro visitas à cooperativa la Riojana, e quem sabe tentar uma conversa com o Dr. Griguol. Assim como a vinícola La Puerta, onde fomos muito bem recebidos, com histórias da família, degustação de vinhos, azeites de oliva e as maravilhosas empanadas da dona Alícia (para empanadas deve ser agendada a visita com um dia de antecedência). E, a 70 km, se encontra a vinícola Chañarmuyo, inserida em uma paisagem deslumbrante, local com hospedagem, ótimos vinhos e infinitas particularidades.
Por fim, mas não menos importante, voltei encantada com a humanidade, simplicidade e carinho das pessoas que conheci na região.
Fernanda Spinelli
Sommelier Internacional FISAR
WSET 3 em Vinhos / Dip. WSET student
Delegada brasileira na OIV